Há um ano, quando organizava alguns papéis, encontrei uma coletânea
de documentos encadernados que recebi de meu pai, há 18 anos, quando me mudei
do Brasil para os Estados Unidos. Continha cópias de certidões de
nascimento e casamento da família.
Olhando os documentos tive a ideia de presentear meu pai com a certidão de
nascimento de seu bisavô, que ele ainda não possuía.
Seria um presente interessante e de valor sentimental.
No dia seguinte telefonei para o "Anagrafe" da cidade de Fuscaldo, na
Calábria, (Itália) onde a família era originária, para
saber da possibilidade de localizar a certidão. Contudo, como não
sabia nem a data, nem o local do nascimento, fui informada de que seria inviável
a localização da certidão.
Liguei para meu pai na esperança que tivesse alguma informação
que pudesse me ajudar, mas ele não sabia nada a respeito do seu bisavô
e quase nada sobre o seu avô, que falecera antes do seu nascimento. A única
informação que tinha era a de que seu avô, com 11 anos de idade,
tinha viajado sozinho para o Brasil, sob a responsabilidade do comandante do navio
e quando chegou ao porto de Santos, havia fugido e nunca mais voltara à Itália.
Nunca tinha ouvido essa história, e a informação me deixou
chocada. Sozinho? Por que? E como sobreviveu?
Meu pai também não sabia a razão, mas aconselhou-me a ligar
para tia Carminha que sabe tudo sobre a família.
E assim, movida por um sentimento de angústia ao imaginar as dificuldades
de uma criança sozinha, em um país desconhecido, decidi investigar
essa história.
Telefonei para tia Carminha que me contou o que sabia e o que se lembrava das histórias
que seu pai lhe contava. Liguei para o Aulus, bisneto de Raffael Santoro, irmão
do meu bisavó, que me ajudou e compartilhou o que sabia sobre sua família
e os descendentes de Raffael.
Aulus teve a sorte de ouvir as historias que lhe foram contadas pela própria
bisavó.
Entrei em contato com tios e primos em busca de informações.
Fui a cartórios e cemitérios. Contactei, arquivos de várias
igrejas, Biblioteca Nacional de Cosenza, Biblioteca do Congresso de Washington,
Arquivo Historico do Centro de memória da Universidade Estadual de Campinas
e Arquivo Histórico Municipal Washington Luis de São Paulo.
Embarquei no mundo fascinante da história e da genealogia em busca de meus
antepassados. Esta busca me ajudou a entender a "necessidade que temos de guardar
as tradições da família e satisfazer a curiosidade justificada,
que nos leva a perguntar de onde viemos, a que nacionalidades, embora remotamente,
nos filiamos pelos laços de sangue, e quais os feitos que enobreceram aos
nossos antepassados" (Luiz Gonzaga da Silva Leme,Genealogia Paulistana, 1903,
Vol. I, pagina III).
E assim motivada, escrevi este breve texto em memória de meu bisavô,
Eugenio Santoro.
Meu bisavô era italiano, nascido em Fuscaldo (Calábria) no dia 28 de
Junho de 1865. Foi batizado Eugenio Maria Carmine, na igreja de San Giacomo Maggiore,
padroeiro da cidade. Era o nono filho de Francesco Santoro e Maria Luigia Calabria.
Nossos antepassados têm origem na cidade de Fuscaldo há mais de 350
anos e pertencia a uma família de escultores, entalhadores e mestres de obras.
A criatividade dos entalhadores, escultores e mestres de obras de Fuscaldo era de
grande importância e teve seu apogeu no século XVIII.
Eles criaram uma nova linguagem arquitetônica, com abundância de decorações
e elementos modulares, especialmente na construção das igrejas e portais
de Fuscaldo, que foi copiada em toda a Calábria por muitos séculos.
O interior da Igreja de Santa Maria della Stella di Scarcelli é um exemplo
do trabalho de escultura e entalhes feitos pela família.
Maria Luigia, sua mãe, era "filatrice", uma atividade que requeria
mãos hábeis e grande experiência na preparação
da seda. Esta experiência era passada de mãe para filha. Com os fios
de seda as mulheres faziam lençóis, toalhas de mesa, toalhas de banho
e vestuários.
Após a Unificação da Itália em 1871, por razões
econômicas, políticas e pessoais, tornou-se um fenômeno social
na Itália.
Em 1876, início da imigração italiana, Eugenio, com 11 anos
de idade, veio para o Brasil, sob a responsabilidade do comandante.
A possibilidade mais cogitada é a de que tenha vindo com a finalidade de
aprender o oficio de "Mozzo" (auxiliar de marinheiro), atividade exercida
por jovens com menos de 18 anos de idade.
A travessia do Atlântico, que durava entre 21 e 30 dias, era muito perigosa
por causa das epidemias, tempestades e incêndios à bordo.
Quando o navio atracou no Porto de Santos, Eugênio, provavelmente motivado
pelo trauma da longa viagem, fugiu do navio.
O Comandante, ao retornar à Itália, contou aos seus familiares sobre
a fuga e um dos irmãos veio ao Brasil na tentativa, sem sucesso, de localizá-lo.
Eugênio foi para a cidade de São Paulo, onde existia uma grande presença
de imigrantes Italianos atraídos pelas oportunidades de comercio e industria.
Foi, então, acolhido por uma família Calabresa que praticamente o
adotou.
Francesco, pai de Eugenio, faleceu em 27 de Março de 1877, com 45 anos de
idade e foi sepultado no "Convento de San Francesco di Paola. Eugenio aprendeu
o oficio de alfaiate e integrou-se a vida no Brasil.
Conheceu minha bisavó, Aurora Alves Franco, filha de José Mariano
Alves de Moraes e Clara Maria Franco, que haviam chegado ao Brasil nos primeiros
séculos da colonização.
A família Alves de Moraes veio de Portugal e descendia de João Ramalho
e Bartira.
A família Franco era oriunda do sul da Espanha e se estabeleceu na cidade
de Socorro, onde eram agricultores e políticos.
Saturnino Antonio Franco, tio de Aurora, foi Presidente da Câmara e Vice Presidente,
no período de 1883 a 1889, pelo partido Republicano.
A família de Aurora não aprovou o relacionamento da filha com um alfaiate
italiano. Aurora, contudo, fez prevalecer a sua vontade casando-se com Eugenio,
em 8 de Dezembro de 1887, na Antiga igreja da Sé. Eugenio tinha 22 anos e
Aurora 16 anos de idade. Foram testemunhas do casamento: José Aloya, e João
Baptista Lancellote.
Em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão
no Brasil. Após a abolição da escravatura, o governo Brasileiro
incentivou a entrada de imigrantes europeus para substituir o trabalho escravo.
Milhares de italianos chegaram ao Brasil para trabalhar nas fazendas de café
do interior do Estado de São Paulo.
Em 9 de Abril de 1889, Aurora deu à luz a Maria Luiza, que foi batizada,
pelo Padre Eugenio Dias Leite, na igreja da Consolação.
Seus padrinhos foram: José Raimundo e Maria Luiza Lancillote.
Em 15 de Novembro de 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República
do Brasil.
Dois anos depois, em 7 de Dezembro de 1891, nasceu o filho Francisco, nome escolhido
em homenagem ao pai de Eugenio, como costume nas famílias italianas.
No dia seguinte, 8 de Dezembro, foram inauguradas a Avenida Paulista e o Sistema
de Iluminação Elétrica.
Minha bisavó adoeceu e eles decidiram mudar-se para a cidade de Socorro,
cuja localização na Serra da Mantiqueira, proporcionaria o ar puro
que poderia ter efeitos benéficos à sua saúde.
Meu bisavô trocou a casa que lhe pertencia, em São Paulo, pela casa
que o seu amigo possuía em Socorro.
Em Socorro já existia um grande numero de imigrantes Italianos, trabalhando
na lavoura e plantações de café.
Eugênio continuou exercendo o ofício e se tornou um alfaiate muito
requisitado.
Em 20 de Setembro de 1896 nasceu José, que foi batizado na igreja de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, padroeira da cidade. Os padrinhos foram Saturnino
Alves Franco e Secundina Carolina Vergal.
Meu avô Benedicto, nasceu em 21 de maio de 1898 e foi batizado na Igreja de
Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, tendo como padrinhos Manuel da Costa e Erminda
Franco da Costa.
As crianças tinham apelidos carinhosos que os acompanharam por toda vida.
Maria Luiza era "Nenê", Francisco "Quiquino", Jose "Zeca"
e Benedicto "Monego". O apelido de meu avô, que significa "meu
nego", é uma expressão carinhosa de antigamente, e foi dado pela
irmã, tia Nenê.
Não obstante todas as tentativas de tratamento, minha bisavó piorou
e veio a falecer aos 31 anos de idade.
Viúvo, Eugênio enfrentou o grande desafio de criar sozinho seus quatro
filhos. Tia Nenê, com apenas 13 anos ajudou-o nessa missão. Carinhosa
e dedicada, abdicou de sua liberdade e juventude para cuidar dos irmãos.
Em 20 de Novembro de 1900, Raffael, irmão de Eugénio, e seu filho
Francesco (Cicilo), desembarcaram no porto de Santos para trabalharem como escultor
e mestre de obra. Maria da Rosa, sua esposa, permaneceu em Fuscaldo com os filhos
Maria Luiza, Angelina, Concetta, Antonieta e José esperando pelo seu retorno.
Em 11 de junho de 1901, aos 73 anos de idades, Maria Luigia,mãe de Eugênio,
faleceu em sua casa, localizada em Aspromonte.
Raffael trabalhou em diversas cidades no interior de São Paulo e em 28 de
Fevereiro de 1907, quando trabalhava na construção da fachada da antiga
Igreja Nossa Senhora do Carmo, em Campinas, caiu do andaime, vindo a falecer.
Maria de Rosa, que na época era uma das poucas pessoas alfabetizadas na região,
tinha como trabalho ler e escrever cartas para as famílias dos imigrantes.
Em maio de 1907,quando percebeu que não chegavam mais notícias do
marido, vestiu-se de preto e embarcou para o Brasil, com toda família, à
procura do marido e filho. Maria Rosa não voltou à Itália e
continuou morando em Campinas, onde criou seus filhos.
Incentivado por Saturnino, irmão de Aurora, que era dentista, tio Quiquino
cursou a Escola de Pharmacia e Odontologia de São Paulo, onde se graduou
em 1911. Foram paraninfos dos formandos, Emilio Mallet, Americo Braziliense e Viera
Salgado. Uma vez formado tio Quiquino foi trabalhar com Saturnino, na cidade de
Amparo e posteriormente mudou-se para a cidade de Campinas.
Tio Zeca cursou a Escola de Pharmacia e Odontologia de São Paulo e a Academia
de Belas Artes. Foi residir em Campinas, onde trabalhou como professor de desenho
na Escola Normal Carlos Gomes de Campinas e no Ginásio Culto à Ciência.
A pintura e desenho eram sua grande paixão (ao lado auto retrato).
Em 1924 meu avô Benedicto formou-se na Escola de Pharmácia e Odontologia
de Pindamonhangaba, e passou a exercer a sua profissão na cidade de Socorro,
onde continuou morando com o pai e a irmã.
Em 4 de dezembro de 1934, aos 69 anos de idade, meu bisavô Eugenio teve uma
parada cardíaca e faleceu em sua residência.
O sentimento inicial de angústia que impulsionou minha pesquisa transformou-se
a cada nova descoberta em profundo orgulho e admiração pela sua coragem,
força e dignidade diante dos obstáculos que superou.
Seu exemplo inspirou-me o desejo de honrar e enaltecer a sua vida.
Como disse Luiz Gonzaga da Silva Leme (Genealogia Paulistana, 1903, vol.1, pág.
III e IV): "procurem inocular no espírito de seus filhos as máximas
da moral cristã por uma cuidadosa educação religiosa,que foi
sempre o segredo da grandeza de alma de seus avós,em seguida evidem os esforços
para enriquecer seu espírito com a cultura intellectual adaptada a sua vocação,
colloquem diante d?elles os vultos venerados de seus avós para que sirvam
de modelos a serem imitados e terão com certeza filhos fidalgos que firmarão
a nobreza de suas famílias".